quinta-feira, 13 de março de 2014

9. A fuga da caverna

Eep nunca viu outra fonte de luz que não fosse o Sol ou a Lua. Quando algo assombroso quebra a rotina da caverna, uma fonte de luz que se move, ela tenta caçá-la como se fosse uma gata correndo atrás do pontinho luminoso de um laser.

Ao se arriscar a sair da proteção da caverna e enfrentar o desconhecido atrás da luz, Eep avista uma grande sombra e reage como se estivesse diante de um gigante ameaçador, incapaz de interpretar a realidade. 


Eep continua sua busca pela fonte da luz e começa a entender que as sombras que via não eram reais. Nesse instante ela inicia sua jornada para descobrir que as tradições de medo e terror que mantiveram os Croods vivos e "felizes" por gerações dentro da caverna não correspondiam à verdadeira realidade do mundo.

Esse roteiro de Os Croods não é nada original. Essa estória é antiga, muito antiga. Tem pelo menos 2.500 anos. Chama-se Alegoria da Caverna e foi escrita na antiga Grécia por Platão. 

Durante o primeiro e breve respiro de racionalidade desde que a humanidade saiu das cavernas e se civilizou, proporcionado pelos filósofos gregosa essência das coisas do céu e da terra foi questionada, as explicações míticas da origem das tradições e privilégios dos reis e aristocratas foram postas em xeque com argumentos racionais. 

Uma representação de Sócrates e Platão
Pela primeira vez os xamãs/sacerdotes que pregavam a natureza divina do mundo foram contestados com argumentações racionais sobre a natureza física das coisas. 

Entre os filósofos, Sócrates era considerado o sábio dos sábios. Ele tinha por lemas “só sei que nada sei” e a antiga e tradicional em versão popular “conheça a você mesmo”; dava aulas e palestras gratuitamente em praça pública, o que irou aqueles que ganhavam dinheiro “educando” o povo.

Sócrates demonstrava por a + b e com pura argumentação lógica o quão inverossímeis eram os mitos da religião grega. Por isso a sociedade 'democrática' da época o condenou a optar entre o banimento ou o corte de sua língua para que deixasse de ensinar verdades inconvenientes. Caso se recusasse, seria condenado à morte.

As acusações contra ele: não acreditar nos costumes e nos deuses gregos (verdade), unir-se a deuses malignos que gostam de destruir as cidades (mentira) e corromper os jovens com suas ideias (bom, depende do ponto de vista)


Ou seja, Sócrates foi condenado por heresia, subversão da religião oficial do Estado. Sócrates preferiu a morte por envenenamento a ser privado de poder ensinar. Ele só não foi queimado vivo porque os gregos pagãos não eram tão cruéis quanto os piedosos cristãos que viriam depois.

Raciocinando logicamente, os filósofos gregos conseguiram grandes feitos. Hipócrates estabeleceu a base da Medicina ao indicar causas físicas para as doenças, e não demônios ou a ira dos deuses; Demócrito dizia que a matéria era constituída de minúsculas porções indivisíveis a que chamou de átomos; Aristarco deduziu, contra todas as evidências, que a Terra girava ao redor do Sol, e não o contrário — 1.800 anos depois, a santa igreja quase condenou Galileu à fogueira por contestar o santo livro.

Enquanto para o resto do mundo a Terra era plana, e alguns achavam que se apoiava em elefantes de carona em uma tartaruga voadora, Eratóstenes calculou com boa precisão o diâmetro do planeta usando a Geometria.


Este é o astrônomo Carl Sagan mostrando como Eratóstenes chegou a essa medida com base na diferença das sombras de dois obeliscos, um sobre o trópico de Câncer e outro na cidade de Alexandria, no Egito. Alexandria foi um importante centro filosófico, voltaremos a falar dela.

Carl Sagan publicou vários livros, um deles virou uma telessérie, Cosmos. Está disponível na internet e em sebos de DVDs. É uma maravilhosa introdução à Ciência, ao raciocínio lógico e ao método científico. Cosmos conta a aventura humana desde os primórdios até a era espacial. Se encontrar, assista que vale muito a pena.

Disse Sagan: Para mim, é muito melhor compreender o universo como ele realmente é do que persistir no engano, por mais satisfatório e tranquilizador que possa parecer. — O Mundo Assombrado pelos Demônios, editora Companhia das Letras, p. 27.

É uma referência de Sagan à Alegoria da Caverna, tema desta postagem.


Platão era discípulo e herdeiro filosófico de Sócrates, e o que sabemos da vida de seu mestre chegou a nós por seus escritos. Platão também narrou o mito do continente perdido de Atlântida e criou essa alegoria inspiradora de Os Croods.

Na Alegoria da Caverna, prisioneiros acorrentados desde o nascimento em uma caverna escura estão impedidos de se mover, não podem olhar para os lados ou para trás. Tudo que eles conhecem do mundo são as sombras que eles veem projetadas na parede à frente. 

Essas sombras são de objetos transportados por pessoas que passam entre uma fonte de luz e um muro alto que impede que os prisioneiros vejam as sombras dos portadores dos objetos.


Para os prisioneiros, as sombras são seres vivos reais. As diversas sombras que se movem são entendidas como coisas reais, e não como as projeções que realmente são. Não há possibilidade de outra forma de entendimento.

Antigamente os prisioneiros eram acorrentados em cavernas, hoje construímos nossas próprias cavernas e nos acorrentamos por vontade própria.


O fato é que um dia um dos prisioneiros consegue se libertar e sair da caverna.

No início, a luz do sol não permite que ele veja a realidade, mas conforme seus olhos vão se acostumando à claridade, ele percebe que existe luz e sombra, e as formas que ele via caminhando na parede eram apenas as sombras dos objetos transportados, e não seres reais.

E quanto mais ele explora esse mundo novo, maior seu entendimento da verdadeira natureza das coisas. Quando ele retorna à caverna e fala das maravilhas que viu, dessa nova realidade, é hostilizado pelos prisioneiros, que não conseguem imaginar tal possibilidade e se recusam a deixar a caverna, contentando-se com sua vida limitada e satisfatória das necessidades básicas.


Resumindo, a caverna seria o âmbito sensível, aquele onde imperam as sensações e não o raciocínio lógico; ao se afastar da caverna e rumar em direção à luz (como Eep) entramos no âmbito inteligível, que nos permite entender a real natureza das coisas. 

Na figura acima, o item 2 era identificado originalmente como a religião, mas eu preferi chamar de falso saber porque não é necessário ser religioso para estar iludindo o povo, os políticos o fazem com maestria. 

Os iludidos eram chamados de crentes, mas isso poderia dar confusão porque, por definição, crente é aquele que crê (seja no que for), mas no Brasil essa palavra está fortemente associada aos protestantes, e não é o caso aqui. 

Da mesma forma, os não iludidos são chamados originalmente de ateus, mas mesmo quem não crê no conceito de Deus vendido pelas religiões pode acreditar em alguma forma de poder superior incompreensível para nós, embora de modo algum feito à nossa imagem, então optei por usar não iludidos.

Então, essa é simplificadamente a Alegoria da Caverna, base para o roteiro do filme Os Croods e também para uma infinidade de outros que você provavelmente já assistiu.


No episódio Homeward, de Jornada nas Estrelas Star Trek Generations, um povo de cultura equivalente ao nosso estágio medieval, cujo planeta está morrendo, é transportado sem que eles saibam para outro mundo habitável em uma simulação de caverna no holodeck da Enterprise para que não descubram que a realidade é bem mais complexa do que o seu entendimento limitado do mundo e do Universo. Mas Murphy chegou antes audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.

E não dá para falar de realidade virtual sem falar do filme mais conhecido sobre vivermos em uma realidade virtual onde nada é o que parece ser, o inesquecível O Vingador do Futuro Blade Runner aquele com o carinha que não é o Johnny Depp.


A Alegoria da Caverna é citada sem culpa nem pagamento de direitos autorais à família do Platão, mesmo porque ele não teve filhos. Culpa do amor platônico.

Há um filme pouco conhecido, O Décimo Terceiro Andar, onde a realidade virtual de um jogo de simulação se confunde com a real virtualidade do mundo em que vivemos. 


Falando nisso, há uma teoria de que somos apenas personagens de um Sims celestial. Envolve alguns conceitos de Física Quântica e preservação da informação além do horizonte de eventos... coisa difícil de entender. E o pior é que... ninguém sabe o roteiro. 

É curioso como alguns conceitos de Física avançada exigem cada vez mais um entendimento que se aproxima da fé em algo transubstancial do que no conhecimento dos limites físicos da matéria.

Nesse aspecto, fica complicado o limite entre o que é Ciência e o que é Religião, tema abordado por Carl Sagan em seu livro e também filme Contato

Charada: Você consegue dizer qual a relação entre as próximas três imagens? Resposta no final da postagem.


Disse Sagan: "A ideia de que Deus é um gigante barbudo de pele branca sentado no céu e que se preocupa com [coisas insignificantes como] a contagem de mortes de cada pardal é ridícula. Mas se pelo conceito de Deus você se referir ao conjunto de leis da Física que regem o Universo, então claramente tal Deus existe. Esse Deus é emocionalmente frustrante... afinal, não faz muito sentido rezar para a lei da gravidade.”




Essa imagem de um Deus único e onipotente espionando cada ato obscuro de cada adolescente cheio de espinhas na intimidade de seu lar se espalhou pelo mundo por obra do expansionismo do Império Romano, que trouxe de suas fronteiras recém-conquistadas uma nova religião baseada em um caldo de antigas tradições locais velhas de milhares de anos.



Essa religião se popularizou e foi absorvida pela elite romana, que a fundiu ao caldo de culturas locais da religião então praticada em Roma, já desvirtuada por elementos do mitraísmo e outros cultos importados da Ásia e da Grécia, inclusive ideias platônicas. 

É por conta desse amálgama todo que nós comemoramos o nascimento de Cristo, cuja data não é mencionada em lugar algum, em 25 de dezembro, dia do Natalis Solis Invicti, o renascimento do Sol invicto no solstício de inverno europeu. 

Essa celebração da volta dos dias cada vez mais longos, marcando o início do fim do inverno, era a maior festa do mitraísmo, religião da elite romana no primeiro século depois de Cristo, e que era celebrada pelo Pontifex Solis Invicti com sua mitra, mitra que é usada até hoje pelo sumo pontífice da igreja.



Roma importou influências de todas as regiões com que teve contato, e ela teve contato até com a China, de onde importava seda. Se os budistas da Índia tivessem tido êxito no esforço de propaganda de sua religião mostrando Buda em trajes greco-romanos, nossa sociedade ocidental hoje poderia ser muito diferente. 


Do Buda greco-romano aproveitou-se a representação das auréolas dos santos católicos.
Essa misturança toda acabou por se tornar a religião oficial do Estado romano e das tribos bárbaras semicivilizadas europeias que mesmo após a desintegração do Império, continuaram sob o jugo romano, agora na forma de cortes sacerdotais centralizadas em Roma e na Roma do Oriente, Constantinopla.

Essas cortes clericais governaram o mundo ocidental por mais de mil anos baseadas em seus dogmas incontestáveis, mantendo a Europa e suas colônias aprisionadas na caverna de uma ilusão conveniente para os reis, imperadores e, principalmente, os próprios sacerdotes. 

O auge de seu poder foi a conquista e colonização da América, e aqui estamos nós pintando e bordando no Carnaval, a maior festa popular pré-mitraísmo de Roma, antes que o relógio marque quarenta dias para a ressurreição do Cristo nascido Sol Invicto durante a Páscoa dos hebreus. 
Detalhe do quadro A Luta Entre o Carnaval e a Quaresma, de Peter Brueghel
É uma confusão das grandes... Não é à toa que tanta gente fique doida maluquinha tentando achar um sentido único e sem contradições para algo que nasceu de múltiplas fontes e tradições não aparentadas. 

O nó na cabeça acontece quando se amarra esse caldo de culturas em um único livro e tenta-se convencer o povo de que essa é a própria palavra de Deus em Pessoa. Não há sentido em pregar o amor ao próximo de um lado, e do outro tentar convencer que exterminar povos e nações seja parte de um projeto divino.

Carl Sagan afirmou [o texto entre colchetes é meu]: 

"Minha visão de longa data sobre o cristianismo é que ele representa um amálgama de duas partes aparentemente imiscíveis: a religião de Jesus [a reforma moral do judaísmo de Moisés] e a religião de Paulo [Cristo como Deus encarnado / Messias aguardado pelo judaísmo]. Thomas Jefferson tentou extirpar as partes paulinas do Novo Testamento. Não sobrou muita coisa quando ele concluiu, mas era um documento inspirador."

É isso, simples assim. Como resultado, hoje temos uma sociedade que se polariza entre o fanatismo acrítico e o materialismo desenfreado, nenhum dos lados com o conhecimento básico da natureza da humanidade e da história do mundo.

Segundo Sagan, se em vez do obscurantismo medieval, o espírito científico dos gregos tivesse vingado, o homem estaria começando a colonizar outros planetas mais ou menos na época em que os europeus estavam descobrindo a América.

Perdemos um tempo enorme. 

Resposta da charada: 
Se você ainda não matou a charada das duas imagens de Deus e da Judeia romanizada, elas foram tiradas dos filmes O Sentido da Vida, Em Busca do Cálice Sagrado e A Vida de Brian, todos do grupo de humor britânico Monty Python.


Por que eu escolhi o Monty Python para essas ilustrações? 

Porque, assim como Os Croods, seus filmes também são uma forma divertida de fugirmos da caverna e vermos pelo lado de fora a realidade ridícula que nos é impingida por uma sociedade que desconhece sua própria História. 

Outro bom motivo: 

O Cavaleiro Negro na imagem acima é John Cleese, autor de vários esquetes dos filmes do Monty Python, e também autor da estória do filme Os Croods:




É realmente um mundo muito pequeno este nosso "que está evoluindo e girando em um braço espiral externo da galáxia que chamamos de Via Láctea."

Um abraço,

Jeff

PS: Eu havia acabado a revisão da postagem no mesmo dia em que descobri que minha tão querida série Cosmos foi atualizada, totalmente refeita com novos efeitos especiais (os antigos já eram incríveis) e inclui as novas descobertas científicas dos últimos 30 anos. Quem realizou foi a viúva de Carl Sagan e Neil Degrasse Tyson, herdeiro e discípulo filosófico de Sagan. A referência a Sócrates e Platão não é gratuita. Há um comentário emocionante do Cardoso no blog meiobit.com, o atalho para ele é este aqui. Pelo entusiasmo do Cardoso, esta nova versão de Cosmos ficará na memória desta geração da mesma maneira que a anterior ficou na minha lembrança. Uma ótima notícia!

Créditos das imagens / Para saber mais:
Croods: Dreamworks Animation 
Alegoria da Caverna: http://criticalthinking-mc205.wikispaces.com/Plato+%26+Socrates
Sócrates e Platão: http://criticalthinking-mc205.wikispaces.com/Plato+%26+Socrates
Steve Jobs: http://super.abril.com.br/blogs/superblog/frase-da-semana-trocaria-toda-a-minha-tecnologia-por-uma-tarde-com-socrates-steve-jobs/
Sócrates: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sócrates
Platão: http://pt.wikipedia.org/wiki/Platão
Carl Sagan: http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_sagan
                  http://camel76.wordpress.com/tag/carl-sagan/
                  http://pt.wikiquote.org/wiki/Carl_Sagan
                  http://atheism.about.com/library/quotes/bl_q_CSagan.htm
Atlântida: http://pt.wikipedia.org/wiki/Atlântida
Caverna simples: http://philosophyzer.wordpress.com/2012/09/21/the-allegory-of-the-cave-by-plato-summary-and-meaning/
Crentes e ateus: http://lexicosdaalma.blogspot.com.br/
Star Trek Generations: http://www.startrek.com/database_article/homeward
13º andar: http://www.imdb.com/title/tt0139809/
Teoria holográfica: http://sci-ence.org/smoke-and-mirrors%E2%80%A6-and-caves-and-computers/
Jesus mítico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mito_de_Jesus
Mitraísmo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mitraísmo
Buda: http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_Buddhism
Em Busca do Cálice Sagrado: http://pt.wikipedia.org/wiki/Monty_Python_and_the_Holy_Grail 
A Vida de Brian: http://pt.wikipedia.org/wiki/Life_of_Brian
O Sentido da Vida: http://pt.wikipedia.org/wiki/The_Meaning_of_Life_(filme)
Carnaval: http://en.wikipedia.org/wiki/Carnival
Quaresma: http://pt.wikipedia.org/wiki/Quaresma
Imagem e colecionáveis de Monty Python: http://www.medievalcollectibles.com/c-930-monty-python-and-the-holy-grail.aspx
Canção da Galáxia: O Sentido da Vida, http://www.lyricsdepot.com/monty-python/galaxy-song.html
Cosmos nova edição: http://meiobit.com/281323/cosmos-a-spacetime-odyssey-review-com-neil-degrasse-tyson/

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